Um pequeno desafio artistico

Paulo Alves escreveu:

Gonçalo Elias escreveu:Aquele pica-pau não me convence. Tamanho errado, cores erradas...

Um colibri?

Diria o mesmo mas um colibri maior do que um guarda-rios..?!

Eu estava a brincar!!

Paulo Alves escreveu:Eu estava a brincar!!

Eu não!
Quando olhei para lá pela primeira vez pensei logo em colibri.

Olá a todos,
pelo que posso observar em detalhes vários da pintura, julgo que esta provavelmente não foi feita à vista. Isto é, a composição que vemos na pintura final não estaria em frente ao artista para ele a pintar directamente. Julgo que será o resultado de uma "montagem" com as diversas partes com origens diferentes. Numa altura em que não existia fotografia, o artista tinha poucas hipóteses, ou pintava à vista ou usava ilustrações ou pinturas de outros publicadas em livros. Podia ainda pintar de memória. Julgo que aqui há uma combinação das três. As espécies são todas elas reconheciveis, mas nenhuma está correcta, o que não seria de esperar de algo pintado à vista. Tecnicamente está bastante básico, mas mesmo com essa técnica não muito elaborada seria de esperar que alguns aspectos das espécies incluídas estivessem representados com "honestidade" (isto é, pinta-se o que se vê), o que não é o caso em vários dos elementos. Neste caso estamos perante representações das espécies, mas aparentemente não de retratos das mesmas, isto é, o pintor provavelmente sabia que espécies queria representar mas o detalhe exigido para esta pintura, sendo aparentemente relativamente baixo, faz com que o detalhe não se possa comparar a por exemplo uma ilustração científica (ou a uma pintura de Durer, por ex).

Vários pontos que indicam o que estou a dizer:

1) padrão facial do guarda-rios não corresponde à realidade, encaixando até melhor numa espécie africana (Alcedo semitorquata, por ex) ou asiática do que na europeia.

2) a ave que é claramente reconhecível como um Picus viridis, mas a coloração verde é mostrada como tendo brilho metálico. A ave não tem cauda (o que poderia ser um pormenor realista, mas neste caso penso que não é). O bico é fino demais e o padrão das faces está ultra-extenso. Nenhuma destas características seria assim representada numa pintura à vista;

3) o galináceo que parece uma perdiz tem a coloração totalmente diferente da de uma perdiz adulta. Parece algo intermédio entre um faisão fêmea (típico em cenas de caça em pintura europeia, mas não a perdiz que é uma espécie ibérica) e uma perdiz (tem bico vermelho). A charrela tb não pode ser devido à falta da marca escura em ferradura no ventre. Penso que isto é mais uma indicação que a pintura não é uma representação honesta, mas sim uma representação "generalista"/"idealista" (a partir de outra ilustração ou de memória);

4) o pato-real, imediatamente reconhecível como tal, tem o pescoço numa posição retorcida, como se deitado numa superfície horizontal apesar de estar pendurado pelas patas (quando a cabeça fica caída na vertical e o pescoço distendido). A mim isto sugere que possivelmente esta ave foi desenhada à vista separadamente, com a ave deitada e mais tarde esses esboços foram usados pelo artista na composição final. As proporções da ave, no entanto não estão correctas, com a asa muito pequena. Mais uma indicação que não foi pintado à vista é a ausência da unha preta na ponta do bico, óbvia a quem quer que estivesse a pintar à vista.

5) o maçarico é mais um mistério, sendo difícil dizer que é um Numenius, apesar de não haver outra hipótese (para além de Plegadis, o que não me parece). O padrão das partes superiores é todo escuro. O bico é recto com apenas uma curva na ponta. Mais uma vez isto é uma representação de memória ou em "segunda mão" através de uma outra ilustração e não pintado à vista.

6) o tordo, mais outra ave típica de caça também é difícil de atribuir a uma espécie em particular, mas diria Turdus philomelos. O aspecto dos flancos bastante escuros não corresponde propriamente a esta espécie. A posição das patas, uma para cada lado, embora presas cada uma por um fio também indicam que há aqui um problema de "honestidade" pois nessa situação ambas as patas ficaram juntas sustentando o peso da ave. Poderá ter sido também desenhada horizontalmente como o pato e incluida na composição de uma forma pouco realista.

7) o coelho/lebre: de facto o tamanho seria muito próximo de uma lebre do que de um coelho, mas as proporções são de coelho, assim como a forma das patas e da cabeça. As patas traseiras de uma lebre esticadas são enormes, o que seria bem claro aqui. A escala não foi bem dada neste animal que julgo que tem a intenção de representar um coelho mas foi desenhada grande demais. Problemas de escala são visíveis de resto em toda a composição, especialmente entre o guarda-rios e os restantes e o pato e os restantes.

Em resumo, a minha opinião é que uma pintura deste tipo não deve ser usada para identificar espécies, uma vez que não foi bem feita com essa função, mas que os animais que se pretendia representar podem ainda assim ser determinados com alguma precisão. Nalguns casos talvez nem mesmo o pintor soubesse muito bem que ave estava a incluir na sua composição, mas a intenção é claramente de fazer uma natureza morta de caça europeia (portuguesa?). Pintura deste tipo vale o que vale, mas penso que não deve ser escrutinada de acordo com os conhecimentos actuais de identificação, uma vez que não resiste. É um desafio interessante de qualquer modo.

Abraço,
Rafael

Rafael Matias escreveu:
2) a ave que é claramente reconhecível como um Picus viridis, mas a coloração verde é mostrada como tendo brilho metálico. A ave não tem cauda (o que poderia ser um pormenor realista, mas neste caso penso que não é). O bico é fino demais e o padrão das faces está ultra-extenso. Nenhuma destas características seria assim representada numa pintura à vista;

Para além dos aspectos já referi acima, o bicho parece ter as asas brancas

Meus caros companheiros de fórum, fico mais do que sensibilizado pela cuidada análise que todos os participantes fizeram da humilde pintura da mina velha sala de jantar. Confesso que quando ela foi posta no fórum de ilustração ficasse no esquecimento depois dos preciosos contributos que já tinha tido, por isso não coloquei mais nenhuma foto da mesma.

Amanhã vou tentar colocar fotos dos pormenores apontados e uma imagem geral com melhor qualidade, e já agora uma vista das restantes pinturas da sala.

Como disse anteriormente desconhecemos totalmente o autor e autores das pinturas, o meu avô comprou a casa nos finais da década de 20 inícios de 30 daí que a minha mãe não tivesse qualquer ideia sobre a autoria ou história da casa até aí. Não restaram quaisquer contas e facturas do período anterior, apenas me lembro de em miúdo ver uns cartões com desenhos recortados que teriam servido de "stencils" nas pinturas de frisos decorativos e molduras.

Nos dois quadros que ladeiam este estão representados peixes pendurados da mesma forma e nas restantes paredes são paisagens, bucólicas com sabor da Europa do Norte ou Leste, com lagos rios e riachos e algumas construções em madeira com telhados de colmo. Num apontamento de um pequeno quadro na parte inferior pode-se ver num lago com montes dois cisnes claramente idealizados.

Amanhã volto ...

Parabéns ao Rafael Matias pela pormenorizada análise do quadro

Ora cá vão as fotoa se ainda houver alguém interessado no tema muitas fotos
Vista da parede da sala

Vista geral do conjunto

Pormenor do maçarico

pormenor dos picas(paus e peixe)

Vista de uma das pequenas cenas

Outra cena

Uma das cenas grandes

e para acabar uma lagosta e uns peixinhos

alcedo escreveu:Confesso que quando ela foi posta no fórum de ilustração ficasse no esquecimento depois dos preciosos contributos que já tinha tido, por isso não coloquei mais nenhuma foto da mesma.

Pelo contrário, aqui é mais difícil de ficar esquecida pois as duas primeiras salas têm muito mais tráfego e as mensagens desaparecem rapidamente da primeira página

PNicolau escreveu:

Paulo Alves escreveu:Eu estava a brincar!!

Eu não!
Quando olhei para lá pela primeira vez pensei logo em colibri.

Curiosamente também pensei logo em colibri (ainda não li o tópico até ao fim)... mas nem sequer uma espécie sou capaz de enunciar.

Colibri não é, nenhuma das características presentes apontam nesse sentido e anatomicamente a forma é do guarda rios e pica-pau ou peto verde

Deixo-vos alguns links que podem ter interesse, sobre naturezas mortas, que permitirão enquadrar melhor este tipo de representação. O primeiro é do Louvre, os seguintes são exemplos de pinturas que incluiram pica-paus na composição. Os pica-paus (em particular o peto-verde) podem ser encontrados com frequência em pintura europeia deste tipo.

http://www.louvre.fr/en/routes/still-life-painting

http://www.wikigallery.org/wiki/painting_374890/Dutch-School/A-Game-Still-Life-With-A-Partridge,-A-Woodpecker-And-A-Jay-Hanging-From-A-Blue-Ribbon,-Song-Birds-On-A-Stone-Ledge-Below

http://m.tefaf.com/fullscreen/trompe-l-oeil-still-life#main

Bons exemplos especialmente o último.
É lógico que a maestria dos pintores oitocentistas que pintara a minha velha sala não se aproximava sequer dos exemplos mostrados. Era uma sala para a pequena burguesia provinciana em que a sugestão de um ambiente requintado, apelaria para a sua ideia de ascensão social e ostentatória do poder económico.
Outros exemplos que conheço quer aqui na Póvoa (hoje cada vez mais raros) quer noutros pontos do país a qualidade é bastante equivalente, em pintura mural mais do que o virtuosismo do pintor interessava a criação de ambientes a sugestão de paisagens ou espaços em tromp l'oeil e principalmente tornar espaços de admiração para as vistas à casa familiar. Isto de preferência , e na maior parte das vezes, com custo moderado e sem levar muito tempo a executar...

Um bom enquadramento alcedo, obrigado.
Já agora mais uns exemplos com espécies semelhantes (com o peto-verde nos favoritos) e também com guarda-rios.

http://www.1st-art-gallery.com/Jan-Fyt/Still-Life-With-Hare-And-Game-Birds.html

http://www.bbc.co.uk/arts/yourpaintings/paintings/still-life-game-and-hanging-snipe-with-goldfish-in-a-bowl-64968

http://mistertristan.blogspot.co.uk/2010/11/cats-in-art-cat-attacking-dead-game.html

http://framingpainting.com/Uploadpic/Peeter%20Boel/big/Still%20Life%20with%20Dead%20Game%20and%20Songbirds%20in%20the%20Snow.jpg

Que morticinios mas sem dúvida grandes exemplos do desenho de aves.

Só uma coisa que me tenho esquecido de perguntar, alcedo. Estas pinturas são originais, ou são reproduções?

Originais, penso eu, não conheço estas cenas de nenhum outro lado

Ok, obrigado.

A pintura é feita a óleo sobre o estuque de gesso com escassa ou nenhuma preparação das superfícies motivo pelo qual surgiram algumas descamações, levantamentos e fendas provocadas pelos movimentos da estrutura de madeira dos pavimentos

Com esta última explicação já percebo melhor o que se vê nas fotos! Obrigado, muito interessante.